terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Assim Falou Zaratustra

DAS TRÊS TRANSFORMAÇÕES

“Três transformações do espírito vos menciono: como o espírito se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança.

Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o espírito forte e sólido, respeitável. A força deste espírito está bradando por coisas pesadas, e das mais pesadas.

Há o que quer que seja pesado? — pergunta o espírito sólido. E ajoelha-se como camelo e quer que o carreguem bem. Que há mais pesado, heróis — pergunta o espírito sólido — a fim de eu o deitar sobre mim, para que a minha força se recreie?

Não será rebaixarmo-nos para o nosso orgulho padecer? Deixar brilhar a nossa loucura para zombarmos da nossa sensatez?

Ou será separarmo-nos da nossa causa quando ela celebra a sua vitória? Escalar altos montes para tentar o que nos tenta?

Ou será sustentarmo-nos com bolotas e erva do conhecimento e padecer fome na alma por causa da verdade?

Ou será estar enfermo e despedir a consoladores e travar amizade com surdos que nunca ouvem o que queremos?

Ou será submerjirmo-nos em água suja quando é a água da verdade, e não afastarmos de nós as frias rãs e os quentes sapos?

Ou será amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma quando nos quer assustar?

O espírito sólido sobrecarrega-se de todas estas coisas pesadíssimas; e à semelhança do camelo que corre carregado pelo deserto, assim ele corre pelo seu deserto.

No deserto mais solitário, porém, se efetua a segunda transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu próprio deserto.

Procura então o seu último senhor, quer ser seu inimigo e de seus dias; quer lutar pela vitória com o grande dragão.

Qual é o grande dragão a que o espírito já não quer chamar Deus, nem senhor?

“Tu deves”, assim se chama o grande dragão; mas o espírito do leão diz: “Eu quero”.

O “tu deves” está postado no seu caminho, como animal escamoso de áureo fulgor; e em cada uma das suas escamas brilha em douradas letras: “Tu deves!”

Valores milenários brilham nessas escamas, e o mais poderoso de todos os dragões fala assim:

“Em mim brilha o valor de todas as coisas”.

“Todos os valores foram já criados, e eu sou todos os valores criados. Para o futuro não deve existir o “eu quero!” Assim falou o dragão.

Meus irmãos, que falta faz o leão no espírito? Não bastará a besta de carga que abdica e venera?

Criar valores novos é coisa que o leão ainda não pode; mas criar uma liberdade para a nova criação, isso pode-o o poder do leão.

Para criar a liberdade e um santo NÃO, mesmo perante o dever; para isso, meus irmãos, é preciso o leão.

Conquistar o direito de criar novos valores é a mais terrível apropriação aos olhos de um espírito sólido e respeitoso. Para ele isto é uma verdadeira rapina e coisa própria de um animal rapace.

Como o mais santo, amou em seu tempo o “tu deves” e agora tem que ver a ilusão e arbitrariedade até no mais santo, a fim de conquistar a liberdade à custa do seu amor. É preciso um leão para esse feito.

Dizei-me, porém, irmãos: que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o altivo leão se mude em criança?

A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação.

Sim; para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso uma santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo quer alcançar o seu mundo.

Três transformações do espírito vos mencionei: como o espírito se transformava em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança”.

Assim falava Zaratustra. E nesse tempo residia na cidade que se chama “Vaca Malhada”.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Fim da Adolescência

Sonhei que um dia estava a sonhar.
No meu sonho, dentro deste sonho,
Podia ver todo mundo sonhando
E todos os sonhos flutuando no ar.
Era a visão mais deslumbrante
Todos os sonhos flutuantes
E tudo e todos a voar.

Enquanto sonhava percebia,
Sempre, ao procurar outro sonho,
Que nehum igual ao meu existia.
Aí o sonho ficou medonho.
Entre todos os que ali sonhavam,
de todos os sonhos que voavam,
Só eu sonhava estar num sonho.

O meu coração palpitou aflito,
Atordoado, nem queria palitar.
Também, sonhozinho esquisito:
Sonhar com os outros a sonhar!

Por que ninguém alí podia
Estar sonhando que sonhava?
Vi que não podia explicar.

Era um terrível pesadelo.
Fiquei em completo desespero -
Ah, não passa de exagero!
Estava a sonhar.

E então, o sonho acabou.
belo susto minha mente pregou.
Mas, sonhos dos outros,
Nunca mais mostrou.

17/11/2007

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Budismo Moderno

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

O Amor e o Prazer

O amor e o prazer são inimigos inseparáveis.
São a felicidade dos ricos, medianos e miseráveis.
Constroem ou derrubam os mais belos castelos.
Não enxergam bons ou maus, feios ou belos.

O amor é o alento, a ilusão inspiradora.
O prazer é o instinto, a vida, o agora.
O amor deve sempre ser bem distribuído.
O melhor prazer sempre é bem escondido.

Se o amor e o prazer separam-se,
Vida e alegria tornam-se
Dúvida e nostalgia.

Quando está apenas o amor,
O amante só sente a dor.

Se está apenas o prazer,
Quem o procura, quer esconder
a dor de ter vivido sem, necessariamente, viver.

A vida é sempre uma surpresa.
Quem busca amar é o caçador
E, ter prazer,
A presa.

Amor verdadeiro é privilégio dos libertos.
O prazer traiçoeiro é a culpa dos incertos.

Quem quer apenas amar
Não pode dar prazer.
Que quer apenas dar prazer
Nã pode amar.

Divino Dinheiro

Bendito seja o teu nome
Aqui e no mundo inteiro,
Oh, pai de todos os deuses,
Nosso onipotente Dinheiro!

Tú és a nossa razão de viver;
És a força, o nosso alimento;
Nos mostra o que devemos ser;
És a dor e a alegria, todo o sentimento.

És tú o unico que nos liberta.
És a nossa sabedoria aplicada,
Nossa desculpa, o nosso alerta
Na hora do tudo ou nada de cada.

Abençoa-nos com a tua segurança,
Expulse-nos o mal, traga-nos o bem,
Dai-nos abrigo, fé, amigos, confiança,
Dai-nos tudo e mais um extrazinho, Amém!

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Silêncio



Fábula
"O cimo da montanha dormita;           .
vales, rochedos e grutas emudecem." 
Alcman.

 ESCUTA - disse o Demônio, pondo a mão sobre minha cabeça. -
A região de que falo é uma lúgubre região da Líbia, às margens
do rio Zaire e ali não há repouso nem silêncio.
"As águas do rio são amarelas e insalubres e não correm para o
mar, mas palpitam eternamente, sob o rubro olhar do sol, em
movimentos tumultuosos e convulsivos. Por muitas milhas, de cada
lado do leito lamacento do rio, estende-se um pálido deserto de
gigantescos nenúfares, que suspiram, um para o outro, naquela
solidão e erguem para o céu os longos colos lívidos, meneando as
frontes imortais. E dentre eles se evoca um murmúrio indistinto,
semelhante ao rolar de uma torrente subterrânea. E um para o outro
eles suspiram.
"Mas há um limite para seu reino, o limite da floresta escura,
horrenda, enorme. Ali, como as ondas em torno das Hébridas, os
arbustos rasteiros agitam-se sem cessar. No céu, porém, não sopra
vento algum. E as altas árvores primitivas oscilam, eternamente,
para lá e para cá, com um rumor poderoso e estalidante, E dos seus
altos cimos, caem, uma a uma, as gotas de um sempiterno orvalho. E as
seus pés, estranhas flores venenosas jazem, estorcendo-se em agitado
sono. E nas alturas, zunem fortemente as nuvens plúmbeas, que correm
continuamente para o oeste, até rolarem, em cataratas, por cima da
muralha ardente do horizonte, E às margens do rio Zaire não há
repouso nem silêncio.
"Era noite e a chuva caía; e ao cair, era chuva, mas, ao
chegar ao chão, era sangue. E de pé, no paul, entre os altos
nenúfares, eu estava, enquanto a chuva caía sobre mim. E os
nenúfares suspiravam um para o outro, na solenidade de sua
desolação.
E, de-repente, através do fino e lívido nevoeiro, surgiu a
lua, toda carmesim, E meu olhar caiu sobre um rochedo enorme e
escuro, que se erguia à margem do rio, iluminado pela luz da lua.
E o rochedo era enorme e de um cinzento pálido. Pálido e cinzenta.
Letras estavam gravadas na superfície da pedra; caminhei através do
paul de nenúfares até à margem, para poder ler as letras gravadas
na pedra. Mas não pude decifrá-las. E ia regressar ao paul, quando
a lua brilhou ainda mais vermelha. Voltei-me e olhei de novo para
o rochedo, para as letras, que formavam a palavra DESOLAÇÃO.
"Ergui a vista e descobri um homem, de pé, no cume do
rochedo; ocultei-me entre os nenúfares, a-fim-de poder ver os
movimentos do homem. Ele era alto, de porte imponente, e
envolvia-se, dos homem. Ele era alto, de porte imponente, e
envolvia-se, dos ombros aos pés, numa toga romana. Os traços de
seu rosto eram indistintos, mas suas feições eram as de uma
divindade; pois luziam mesmo através do manto da noite, da névoa,
da luz e do sereno. Erguia o cenho, pensativamente, e seu olhar
ardia de preocupação; e nas poucas rugas que lhes sulcavam as
faces, eu lia as legendas de tristeza, de fadiga e de desgosto
pela humanidade, e o amor ansioso da solidão.
"E o homem sentou-se sobre o rochedo, pousou a cabeça na
mão e contemplou meditativamente a soledade. Mergulhou a vista
nos arbustos rasteiros e inquietos e elevou-a às altas árvores
primitivas e, mais alto ainda, até ao céu rumorejante e à lua
avermelhada. E escondido em meio aos nenúfares, seguia eu os
movimentos do homem. E o homem tremia na solidão; mas a noite
avançava e ele permanecia sentado no rochedo.
"E o homem desviou depois sua atenção do céu e baixou a
vista sobre o lúgubre rio Zaire, sobre suas águas lívidas e
amarelas e sobre as legiões lúridas de nenúfares. E o homem
escutava os suspiros dos nenúfares e o murmúrio que deles se
evolava. E, bem oculto, espreitava eu as ações do homem. E o
homem tremia na solidão; mas a noite avançava e ele permanecia
sentado no rochedo.
"Depois desci para os recessos do paul, patinhando nas
brenhas de nenúfares e gritei pelos hipopótamos, que habitavam
nos lameiros mais fundos do pântano. E os hipopótamos ouviram
os meus gritos e vieram, com o behemoth (1), colocar-se no sopé
do rochedo, e à luz rugiram forte e pavorosamente. E, bem oculto,
espreitava eu as ações do homem. E o homem tremia na solidão;
mas a noite avançava e ele permanecia sentado no rochedo.
"Depois apostrofei os elementos, com maldições
tumultuosas; e uma terrível tempestade formou-se no céu, onde
antes não havia vento. E lívido se tornou o céu, com a
violência da tempestade. E a chuva golpeava a cabeça do homem;
e a água do rio corria escachoante, a espumejar de dor; e os
nenúfares gemiam nos leitos; e as florestas se despedaçavam ao
sopro do vento; e o trovão ribombava; e os raios caíam; e o
rochedo se abalava até a base. E, bem oculto, espreitavam eu
as ações do homem. E o homem tremia na solidão; mas a noite
avançava e ele permanecia sentado no rochedo.
"Encolerizei-me, então, e amaldiçoei, com a maldição
do silêncio, o rio, e os nenúfares, e o vento, e a floresta,
e o céu, e os trovão, e os gemidos dos nenúfares. E,
amaldiçoados, emudeceram. E a lua deixou de vaguear pela
estrada celeste. E o trovão morreu ao longe. O raio não mais
fulgurou. E as nuvens penderam imóveis. E as águas voltaram
ao seu nível e sossegaram. E as árvores cessaram de oscilar.
E os nenúfares não mais suspiraram. E não  mais se ouviu o
murmúrio que deles se evolava, ou qualquer sombra de som,
por toda a vastidão ilimitada do deserto. E ao contemplar
as letras gravadas no rochedo, vi que haviam mudado; lia-se
agora a palavra SILÊNCIO.
"E de novo volvi o olhar para o rosto do homem e seu
rosto estava lívido de terror. De-repente, ergueu a cabeça e
pôs-se de pé no rochedo à escuta. Mas nenhuma voz havia, por
toda a vastidão ilimitada do deserto. E as letras gravadas no
rochedo diziam silêncio. E o homem estremeceu, voltou o rosto
e pôs-se em fuga, precipitadamente; e nunca mais o tornei a ver."
  .....................................................
Ora, lindas história se encontram nos volumes dos Magos, nos
melancólicos volumes com fecho de ferro. Neles, afirmo, há
esplêndidas histórias do Céu e da Terra, e do mar poderoso; e
dos Gênios que governam o mar, e a terra, e os altos céus. Há
também muita ciência nas palavras proferidas pelas Sibilas; e
coisas sagradas se ouviam outrora, junto às folhas sombrias,
que tremiam em torno de Dodona; mas, considero, tão certo como
vive Alá, essa fábula que o Demônio me contou, sentado ao meu
lado, à sombra do túmulo, como a mais maravilhosa de todas! E
ao terminar o Demônio sua história, caiu dentro da cavidade do
sepulcro, às gargalhadas. E como eu não pudesse rir com o
Demônio, ele me amaldiçoou. E o lince, que vive eternamente no
sepulcro, saiu do seu fojo e deitou-se aos pés do Demônio,
encarando-o fixamente.

(1)  - Animal considerado como o hipopótamo do Nilo, e descrito no livro de Jó (XL 15-24) (Nota dos TT.)(Publicado pela primeira vez no BALTIMORE BOOK, em 1839)
    EDGAR A. POE